Solidariedade egoísta

"O Teatro nasce quando o ser humano descobre que pode observar-se a si mesmo: ver-se em ação. Descobre que pode ver-se no ato de ver - ver em situação. (...)
Essa é essência do Teatro: o ser humano que se auto-observa."
("O Arco-Íris do Desejo", Augusto Boal, pág. 27)

Talvez essa seja um dos principais motivos da dificuldade enorme do ator em superar atuações repetitivas e pouco criativas: a capacidade de se auto-observar. Como é possível realizar isso em cena ou nos ensaios, se nosso hábito recorrente é o de criticar os outros? Prestamos tanta atenção na vida do outro, na habilidade de nosso atleta ou ator preferido, em nossos pais ou filhos, maridos ou mulheres que acabamos destinando um tempo muito curto para ampliar nossa própria área de competência. Como explica Boal, ver A SI MESMO. No contexto, ele não exclui outros seres humanos, claro, mas começamos por analisar alternativas a nós mesmos.

Analisar alternativas a nós mesmos...Como?

"É isto, precisamente, que acontece conosco quando estamos elaborando um papel: desde o instante em que o ator sente processar-se nele esta mudança, passa a ser um protagonista ativo na vida da peça - brotam nele verdadeiros sentimentos humanos. Muitas vezes esta transformação da solidariedade humana nos sentimentos reais do personagem dá-se espontaneamente."
("A Preparação do Ator", Constantin Stanislavsky, pág. 207)

Nisso Stanislavisky nos ajuda a encaixar os outros em nossas vidas. Não em um sentido crítico, mas como oportunidade para um aprendizado constante.
Buscar compreender, antes de repreender.
O ator que começa repreendendo seu parceiro em cena, seu diretor, seu produtor ou professor, demonstra que não possui a habilidade da compreender (mas talvez nem a conheça - e sim, claro, deve ser compreendido por isso, mas sem nos omitirmos da questão).

Ser intolerante significa olhar o mundo somente com nossos dois olhos e portanto, incapazes de criar outros olhos necessários à criação de outras diferentes personagens.

Ser solidário significa ver o mundo com infinitos pares de olhos diferentes - habilidade tão necessária para o verdadeiro ator-artista.

Parece um grande paradoxo: analisar NOSSAS atitudes, avaliando pensamentos originados a partir de um pensamento ALHEIO. Talvez mais uma das verdades que se expressam por paradoxos.